Um conto pelos 12 anos de um dos episódios mais sublimes da história do futebol
– Zwazo, Zwazo! Acorde!
Era assim, Zwazo, que na língua crioula haitiana quer dizer pequeno passarinho, que o irmão mais velho chamava o mais novo.
– Acorde! Os tanques de guerra tomaram as ruas!
O menino levantou num só salto e se pôs no chão, com as mãos na cabeça. Puro medo.
Nem respirou, nem pegou roupa, nem vestiu chinelo. Saiu pelas ruas, de mãos dadas com o irmão, caindo no frenesi imenso que acometia Porto Príncipe.
Zwazo não entendia nada, mas a confiança cega o fazia se deixar levar pelo irmão.
Corpos esguios driblando a multidão, ganhando terreno. À medida que iam andando, o povo se fazia mais denso a ponto de impedir o avanço dos dois. E certa feita o aperto foi tanto que Zwazo sentiu a mão do irmão escapar. E de repente, o menino era todo solidão em meio a uma mar de gente.
Assustado, o piá berrou, buscou nas mãos de estranhos a mão do irmão, mas nada. Esmoreceu. E foi com a multidão, que o carregava à força, como um corpo sem vontade, levado ao sabor da massa e do vento.
Cheiro de óleo diesel. Zumbido de aço encontrando ferro. Gritos, súplicas. E abriu-se diante do menino um clarão – aquela gente o tinha empurrado para o meio rua por onde passavam tanques de guerra.
Zwazo congelou. O frio e a febre correram seu corpo magro. Olhos arregalados, mãos geladas e boca trêmula, fazendo um bico que ele não conseguia conter – era o retrato do medo.
O menino olhou para os soldados, mas não viu armas. Fitou as mãos deles mas só viu acenos. Notou que as fardas não eram de guerra, mas amarelas. E entendeu, enfim, que a violência, naquele dia, havia sido brecada por uns moços de bem, uma gente feliz e acolhedora.
Viu um careca de dentes separados, viu um cabeludo de boca imensa. Lembrou que conhecia aqueles moços da televisão.
E estourou no peito de Zwazo uma alegria que ele ainda não conhecia. E ele correu como nunca tinha corrido antes, acompanhando os tanques, celebrando uma graça inédita, um entusiasmo novo, um afeto insólito.
O friozinho na barriga, por uns minutinhos, não era de fome – era de alegria, da mais imaculada alegria.
O piá empunhou uma sacola plástica do chão, de supermercado, amarelinha, escorreu o lixo que tinha dentro e hasteou sua própria bandeira, sacudindo a felicidade e irradiando o orgulho de uma cor que agora era dele.
A multidão gritava num êxtase tal que o som dos tanques e o barulho do ferro ia dissipando até que tudo fosse graça e gozo e nada mais.
Aos poucos, tudo foi desacelerando – os tanques, Zwazo, a plateia. Chegavam ao estádio onde o jogo se daria dali a pouco.
Inofensivo como todo guri novo, ele pensou que entraria na cancha e que teria mais uma ou duas horas daquele arrebatamento, mas não. Foi impedido por homens que exigiam dinheiro ou comida em troca da entrada.
O guri, então, se fez triste e cabisbaixo. Se achegou do portão do estádio e mirou pelo vão, como a gente faz com a vida, esperando ver um naco de uma magia que ele só conhecia pela televisão.
Viu um pedacinho de gramado verde e sorriu, sabendo que cada trecho de camisa canarinho que passasse por ali compensaria irremediavelmente os anos de miséria e amargor.
Zwazo via a vida pela fechadura.
Hoje, o Desembarque em Porto Príncipe – um dos capítulos mais bonitos da história do futebol –, completa 11 anos. A história de Zwazo não existiu, mas poderia ter existido. É ficção, mas é futebol. E todo futebol é verdade.
Dê play no vídeo e entenda a comoção desse povo.
Este é um texto do Velho Cronista. Para ler outras cronicas do autor, visite: www.velhocronista.com